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pedagogia formal

paula braga


Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Por que sequer atribuo eu
Beleza às cousas.
Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
(...)

Alberto Caeiro



Às vezes em dias de luz perfeita e exata, lembro de obras de arte que me fazem entender melhor a luz, como as de Estela Sokol. Preocupa-me essa dependência que tenho da arte para conseguir enxergar o mundo. Eu nunca repararia que o gato branco, deitado ao lado da sacola vermelha de plástico, ficou cor de rosa, se eu não conhecesse uma obra que trata da cor-luz, como a obra de Sokol. O deslumbramento prazeroso não vem do gato cor de rosa, porque eu sei que não há gatos cor de rosa: vem de eu saber, de eu ter aprendido com uma obra de arte, que existem fenômenos naturais da cor e da luz que causam a mágica do tingimento dos pelos brancos.

        Clarabóia, obra de Estela Sokol, apresentada na última individual da artista em SP (em janeiro de 2011 no Paço das Artes), é uma peça de parede, uma grande fita circular de madeira laqueada de branco, com 180cm de diâmetro, cuja face interna é pintada com um amarelo luminoso. A parte da parede delimitada pelo círculo muda de cor, interage com a obra; agora é amarelo claro. Essa fita circular me conduz numa curva que vai do objeto de arte a um fenômeno da cor e da luz natural, e então retorna à esfera da arte. Dependo de obras assim para saber ver o mundo e ver a cor-luz da arte refletida sobre meu estar na realidade. Se é arte, muda sutilmente a cor do meu entendimento das coisas.

        O que é a arte construtiva senão uma arte que racionalmente constrói formas – silenciosas, não discursivas – que engendram no corpo um novo entendimento perante a realidade? Como Estela Sokol afirmou quando a visitei pela primeira vez em seu ateliê, os problemas surgem e são solucionados no fazer. Não há inspiração de nenhuma fonte misteriosa, nenhuma força criativa separada da manipulação direta dos materiais, da cor e da luz. A ideia não é adesivada ao trabalho; nasce dele, brota da construção da forma. Estela Sokol pertence a uma tradição do construtivismo que no Brasil floresceu no final dos anos 1950, nos Objetos Ativos e Pluriobjetos de Willys de Castro, nas Superfícies Moduladas de Lygia Clark, e na pesquisa da cor empreendida por Hélio Oiticica nas Invenções, Relevos Espaciais, Bilaterais e Núcleos.

        Trabalhando com a sobreposição da cor em PVC transparente, na série A cor é que tem cor nas asas da borboleta[1], Estela Sokol vai criando, por síntese subtrativa de luz, outras cores, escurecendo seus azuis com uma intersecção no vermelho, chegando ao preto nas áreas de intersecção total de todas as cores. Os plásticos coloridos, semi-translúcidos, em cores fluoretadas que inovam a paleta do construtivismo brasileiro, encapam pequenos chassis, em sobreposições de campos de cor flutuantes que nos remetem aos jogos entre moldura e superfície de Lygia Clark. Uma fina fresta entre dois azuis revela o plástico magenta como primeira camada usada na peça. Um azul brilhante quase some de tão fino na borda do retângulo, e dobra a esquina da peça, salientando a lateral do chassis e inserindo a obra numa transição entre a pintura e a escultura. São por vezes objetos muito pequenos, com cerca de 15 cm em sua maior dimensão, e que podem ser confundidos com estudos para peças maiores, se não viessem em bando, cobrindo uma enorme parede, ao lado de pequenas gravuras, de inúmeras variações no uso do acrílico e de peças em que o plástico recebeu uma camada de emborrachamento automotivo preto, selando a possibilidade do brilho e propiciando outros estudos sobre a interação da cor-pigmento com a cor-luz.

        A dimensão reduzida desses objetos que nos são apresentados às dezenas, feitos à mão, com camadas de plástico sobre chassis, sugere ainda a noção de "arte menor", de artesania, ao passo que a repetição de objetos, que diferem um do outro por pequenos detalhes, aliada ao uso de materiais como plástico, acrílico, esmalte sintético e emborrachamento automotivo, remete a um processo industrial. A síntese de industrialização, artesania e artes plásticas grita por uma leitura vinculada à Bauhaus. A decisão por instalar essa parede com dezenas de obras é outro gesto que invoca imagens célebres da arte construtiva, como a exposição 0-10 de 1915, quando o quadrado negro de Malievitch foi instalado na quina entre duas paredes, rente ao teto, ou fotografias do ateliê de Mondrian. A instalação de vários pequenos trabalhos em uma só parede reproduz, ainda, o próprio ateliê de Sokol, em São Paulo, um laboratório de experimentos com a cor-luz forrado com peças que deixam rastros de cor nas paredes brancas.

        Esse laboratório foi transferido por 40 dias para a extensão branca da neve austríaca no início de 2011. Com a luz exata do sol batendo no branco-neve, Sokol captou fotografias dos rastros de objetos prosaicos de cor intensa, como bolas de latex e placas de acrílico. A cor desses objetos mancha a neve branca em algumas fotografias da série Secret Forest, ou acende-se como uma luz de neon na série Polarlicht. Como se estivesse investigando uma fonte de energia alternativa, a artista aparece em fotos da série Making off or not plantando usinas de cor no gelo. Em uma das fotos dessa série o roxo da bola de vinil parece vazar no solo branco enquanto ao longe a artista carrega um objeto-reator de energia verde.

        A exposição conta ainda com uma série de objetos em acrílico e PVC que formam grandes barrigas saltando da parede, as Ofélias. Seriadas e justapostas, constroem um túnel cinza dentro do qual um verde fosforescente brilha como um néon. Mas é pura cor-luz pulsando num túnel de tempo que nos transporta a outras experiências construtivistas.

        Na luz perfeita e exata dessa exposição, a arte tem toda a realidade que pode ter. E eu, sem entender porque chamo de beleza a essa clareza de forma, entendo que é uma forma que clareia meu caos de entendimento do mundo.

maio de 2011

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1          A cor não é uma mera característica da borboleta; ao contrário, é a cor que se manifesta na borboleta: a borboleta é o corpo da cor. O título dessa série é outra referência ao heterônimo de Fernando Pessoa:

Passa uma borboleta por diante de mim/ E pela primeira vez no Universo eu reparo/ Que as borboletas não têm cor nem movimento,/ Assim como as flores não têm perfume nem cor./ A cor é que tem cor nas asas da borboleta,/ No movimento da borboleta o movimento é que se move,/ O perfume é que tem perfume no perfume da flor./ A borboleta é apenas borboleta/ E a flor é apenas flor. (Alberto Caeiro)



secret forest

exposição individual organizada por joão guarantani com texto de paula braga
gallery 32, londres, inglaterra, 2011