construção de lugares possíveis
fernanda lopesCom certeza não estamos olhando para traz. Se estivéssemos, facilmente veríamos nossas pegadas deixadas na neve branca, marcando o caminho que fizemos para chegar até ali. Mas se não estamos olhando para trás, para onde estamos indo? O recorte vertical da imagem não revela muito da paisagem. Não há nada que nos indique em que parte do mundo estamos.
Percebemos formas que lembram montanhas em meio à imensidão branca. Perto de nós está uma forma volumosa, circular, em um laranja que parece estar acesso e contaminar parte da neve branca com esse laranja. A falta de marcas no chão também nos faz pensar como aquele objeto chegou até ali. Aliás, para onde mesmo estávamos indo?
Ver a fotografia da série Polarlicht da artista brasileira Estela Sokol é como entrar em uma sala de cinema e começar a ver um filme pela metade. Polarlicht faz parte da exposição Se o deserto fosse laranja a coisa seria cor de rosa que Sokol apresenta em Macau e reúne um panorama da produção recente da artista, com trabalhos realizados entre 2010 e 2012 – muitos deles ainda inéditos. São 10 esculturas em marmore e acrilico e ou pintadas, duas fotografias da série Secret Forest e cerca de 15 pinturas da serie A cor é que se faz cor na asa da borboleta.
A mostra marca um novo momento na produção da artista. A referência à paisagem sempre esteve nos trabalhos de Sokol. Esculturas e relevos em madeira, mármore, acrílico e tinta automotiva, e até mesmo as gravuras, sempre insinuaram paisagens ao terem como títulos Crepúsculo (2007), Soturno (2010), Meio dia (2007), Estudo para uma manhã de neve (2009), Alvorada (2011), Meio dia e meia (2006), Solstício (2009), Frozen Sky (2009). Interessada na pesquisa de questões relacionadas à refração da cor e da luz, a artista dava ao espectador indícios de paisagem. Agora, as paisagens aparecem de maneira mais direta, mas estão longe de ser uma figuração, uma representação da paisagem real.
As séries Polarlicht e Secret Forest são reveladoras dessa mudança. As fotografias foram realizadas em 2011 durante uma residência artística na Áustria e na estadia da artista na Patagônia Argentina. A neve que toma conta dessas paisagens foi a tela em branco que a artista usou para construir suas próprias paisagens. A superfície de gelo e neve, os tons soturnos das florestas e bosques, as diferentes luminosidades dos dias são tratados aqui como elementos escultóricos e geram um embate com as bolas de látex, com as placas de acrílico enterradas ou apoiadas nas superfícies nevadas, projetando cor e luz sobre a superfície alva. O resultado é uma paisagem construída pela artista a partir do fazer.
Esse mesmo processo de construção se dá nas pinturas de pequeno formato. Nesses trabalhos que medem aproximadamente 16x22 cm, as telas brancas são encapadas com PVC colorido. As camadas de cor vão se sobrepondo e gerando novas cores desses encontros. Aqui, como nas fotografias e nas esculturas, interessa a Estela Sokol não a cor pura, mas sim a cor e as suas possibilidades a partir das relações que vão se estabelecendo – e aqui a artista entra em diálogo com a tradição da pintura brasileira e pintores como Paulo Pasta, Sergio Sister e Eduardo Sued. Nesses encontros de planos de cores, paisagens se insinuam. São mesmo horizontes ou luzes que mudam ao longo do dia, ou apenas a passagem de um plano de cor para o outro? A dúvida é reforçada pela palheta da artista, que além de materiais industriais reúne também cores industriais. Apesar de estarem na paisagem ou falarem de paisagem, essas são cores fabricadas. Cores que não são do mundo. O verde não é o verde da grama. O azul não é o azul do céu. São cores feitas pela industria. São cores feitas a partir das relações que Estela Sokol estabelece entre elas. Por isso, Se o deserto fosse laranja a coisa seria cor de rosa.
setembro de 2012
se o deserto fosse laranja a coisa seria cor-de-rosa