a ressurreição pela cor
daniela nameOfélia é fogo sob a geleira. Nota dissonante em uma corte enrijecida pela traição e pela cobiça, ela arde de paixão por um príncipe incapaz de enxergar algo além do fantasma do pai e do desejo de vingança. Ponto de luz e de cor boiando inerte no lago congelado, a dama suicida é quase uma irmã das intervenções que Estela Sokol fez na neve da Áustria.
A Morte das Ofélias, individual da artista na Galeria Anita Schwartz, é uma montagem contagiada por uma melancolia e por um luto semelhantes aos do Reino da Dinamarca. As peças negras em mármore, acrílico e PVC são corpos opacos que deixam no espaço – piso e paredes – um rastro de cor. Saídos de superfícies de tinta ou de placas de acrílico apoiadas sobre as peças, tons de alaranjado, rosa e amarelo ganham o ambiente como o fantasma que assombrou Hamlet. Eles são ainda o espectro da história da arte e da pintura, eterna perturbação para a arte contemporânea.
Sokol trata cada trabalho, de fato, como um corpo. Ao pintar ou inventar camadas transparentes para suas peças, ela cria vísceras e membranas para sua sutil geometria. O léxico visual da artista, com placas que se dobram como seios, cinturas ou cachoeiras, arredonda ângulos retos e perturba quadrados de maneira silenciosa e feminina.
É também delicada a relação destes trabalhos com o espaço da galeria. Com pé direito monumental, a sala principal pode ser uma tentação para uma ocupação gigantesca, com peças que testem em tamanho seu grau máximo de potência. A Morte das Ofélias não cria um duelo com esta monumentalidade e nem procura preenchê-la a todo custo. Há uma deliciosa despretensão na montagem, que é quase uma transferência do ateliê da artista para a sala de exposição e tira partido dos espaços vazios. É nas paredes brancas e no piso desocupado que a cor presente nas esculturas negras pode se espalhar, revelando um pouco da alma contida em cada corpo.
No pequeno átrio antes do grande salão, o arranjo das pinturas feitas de camadas de material plástico e ampliações fotográficas em metacrilado, um elogio ao acúmulo, dá continuidade a um diálogo que Sokol iniciou há algum tempo com Malevitch e o Suprematismo. Sobretudo com a exposição 0,10 (1915), em que o artista russo aproximou seus quadros de uma maneira radical e aparentemente desconexa, fazendo da própria montagem uma obra e um discurso à parte. Ao instalar seu Quadrado negro sobre fundo branco em uma quina no canto superior da sala, Malevitch deu à pintura abstrata o lugar destinado aos ícones religiosos da Igreja Ortodoxa Russa. A geometria ganhou o espaço da metafísica e do simbólico.
Sokol faz operação semelhante em A Morte das Ofélias, com o auxílio não só da herança suprematista, mas também de outra leitura do sublime: o romantismo dos personagens de Shakespeare, vizinho dos abismos e montanhas, mas também da solidão de Caspar Friedrich.
A experiência da artista no inverno dos Alpes Austríacos foi decisiva para este resultado. Para realizar as séries Secret forest e Polarlicht, ela enterrou na neve placas e cubos de acrílico laranja e amarelo e pousou bolas de látex roxo e rosa-choque nos troncos de árvores. Há ainda o verde tomando a imensidão branca como um retângulo fluido e imperfeito. Cada corpo de cor morre um pouco na neve para poder emprestar a ela um pouco da sua natureza, anunciando ali a existência de dimensões além do plano palpável, já que cada forma se amplia através da luz.
Ofélia vai nesta mesma direção: ao se despedir da vida, ela anuncia a possibilidade de compaixão para o mundo estéril em que vive. Não é preciso ser cúmplice daquele algo de podre no Reino da Dinamarca. Ao voltar à personagem, Sokol promove outra ressurreição: a da herança de pintores como Millais e Delacroix, que também reinventaram suas Ofélias, e de toda uma legião de coloristas da história da pintura.
Austríaco como estes trabalhos na neve, Franz Weissmann guardava em seu ateliê em Ipanema projetos de escultura feitos de cartolina e de clipes. Tinha estantes abarrotadas destes protótipos e afirmava que todos eles já nasciam com seu destino traçado. Mesmo que nunca houvesse material para isso, cada clipe torcido era o sonho de uma escultura monumental. A ida para o gelo dos Alpes revela esta mesma vocação para a obra de Sokol. O espaço amplo da natureza potencializa sua geometria evanescente. Como Ofélia, seus trabalhos se transformam na neve para iluminar a paisagem.
As fotos da Áustria colaboram muito para o estado de melancolia da mostra. Entrar na floresta é descortinar um universo extremamente metafórico, tanto para as artes visuais como para a literatura. Ofélia se perde na floresta antes de despencar do salgueiro para boiar no lago. Os irmãos João e Maria entram na mata fechada para virar presa da bruxa malvada. Os casais de Sonhos de uma noite de verão, outra peça de Shakespeare, mudam seus destinos ao conviver com os seres fantásticos que se escondem depois das árvores.
Na pintura Os caçadores na neve, de Bruegel, os personagens parecem estar voltando da floresta quando chegam ao topo da montanha e enxergam o povoado lá embaixo, se desenhando no vale. Os lagos congelados desta obra-prima de 1565 são planos de um azul esverdeado que reconstroem e dão novo sentido à imensidão branca da cena. Parecem ancestrais dos retângulos e linhas fosforescentes com que Sokol pintou – e perturbou, no melhor dos sentidos – o deserto de gelo.
A floresta é uma passagem, a despedida de um mundo para a descoberta de outro. Este adeus, como todos, exige luto e silêncio. Sokol nos proporciona esta necessária pausa reverente, para que possamos perceber a intensidade da cor incendiando o gelo, reverberando no branco como o anúncio da vida depois da morte.
agosto de 2011
a morte das ofélias