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gelatina


exposição individual com curadoria de rodrigo naves
anita schwartz galeria de arte, rio de janeiro, brasil, 2013
fotos gui gomes


+ sobre as obras

gelatinas (de uma série de pinturas plásticas), 2013

meio-fio, 2013



+ catálogo

gelatinas e águas-vivas

rodrigo naves


Ímenos

"...Cumpre amar inda mais e sobretudo
A volúpia malsã que só com dano se consegue
e que raro encontra o corpo capaz de a sentir como ela pede –
que, malsã e danosa, propicia
uma tensão erótica que a sanidade ignora..."

Trecho de carta escrita pelo jovem
Ímenos (de família patrícia) muito conhecido
Em Siracusa como libertino
Nos libertinos tempos de Miguel III.

Kontantinos Kaváfis
(tradução de José Paulo Paes)



Da primeira vez que pude escrever sobre as pinturas e esculturas de Estela Sokol, procurei pensar seu trabalho a partir de balizas amplas: o estatuto ambíguo da cor tal como se mostra na produção artística contemporânea, e seus vínculos com a experiência social dos nossos dias.[1]

       A meu ver, resumindo o artigo anterior de modo sumário, a artista lançava mão de materiais e cores de origem pop (placas de acrílico coloridas e cores fosforescentes) para problematizar o rigor de formas geométricas com longa presença na arte construtiva (cubos, por exemplo). Por outro lado, o uso de materiais artificiais e muito pouco nobres (faixas de PVC coloridas, por exemplo), de origem pop e industrial conquistavam passagens de cor muito sutis, por um processo construtivo de superposição de transparências, que parecia alcançar a sofisticação das velaturas renascentistas.

       Neste segundo texto, pretendo entender melhor o significado desses trabalhos, que se movem produtivamente entre duas vertentes artísticas antagônicas (construtivismo e arte pop), sem o menor sinal do sincretismo das tendências pós-modernas, que raramente vão além de um jogo de citações e referências cristalizadas. Ao contrário, o esforço da artista vai no sentido de tirar partido das possibilidades abertas por artistas anteriores que trabalharam com o que mais interessa a Estela: a experiência da cor.

       No livro L’idée fixe (1932), do poeta e escritor francês Paul Valéry, durante uma discussão sobre o conhecimento que se pode ter dos próprios homens, um dos personagens diz: "O que há de mais profundo no homem é a pele, desde que ele se conheça. Mas o que há de... verdadeiramente profundo no homem, desde que ele se ignore... é o fígado... E coisas semelhantes." A atual exposição de Estela Sokol, acredito, toca em questões próximas a essa, ainda que as circunstâncias históricas conspirem contra ela, pois no mundo contemporâneo o recurso aos sentidos funciona mais como apelo, como uma ânsia de despertar a atenção, do que como a intensificação da presença de seres e coisas.

       Na própria construção das cores de seus quadros – feita pela superposição de faixas translúcidas de PVC – já se insinua uma superfície movediça (a pele), pois elas se mostram simultaneamente como superfície autônoma e como resultado e condição das demais faixas coloridas. Ou seja, por mais que possamos identificar com maior ou menor nitidez as várias áreas de cor, também percebemos os deslizamentos que levam à formação quase sedimentar dos outros campos coloridos.

       É quase certo que seja ao sensível, à sensualidade – e não à pele num sentido estrito – que esteja se referindo o personagem do livro de Valéry. De fato, é apenas quando o corpo se torna algo não objetual, quando se converte em uma espécie de mormaço, que efetivamente deixa de ser uma somatória de fígados, órgãos claramente identificáveis e com funções precisas.

       As pinturas de Estela parecem realizar em sua própria trama esse movimento em que as cores ainda mantêm um pouco de sua natureza de onda luminosa, sem uma identificação precisa com alguma coisa. Basta pensar aqueles deslocamentos colorísticos associados a alterações de temperatura e de pressão na pele para percebermos que seus quadros incorporam a sensualidade, sem o menor vestígio de figuração. E como as cores obtidas pela artista não têm brilho, não se diferenciam nesse aspecto da grande maioria dos demais seres do mundo, sua aparência fosca, baça, tende a nos colocar num plano mais próximo àquele dos quadros, sob a ação de seu calor. Paulo Pasta lida com questões semelhantes por outros caminhos. Apenas com o auxílio das cores a óleo e, por vezes, um pouco de cera.

       Mas o refinado tonalismo de muitos dos quadros da artista também contribui para essa volatilização sensual das cores. O crítico italiano Franco Solmi, num livro sobre a pintura de Morandi, levanta algumas possíveis críticas à obra do artista muito mais esclarecedoras que os inúmeros elogios que se fizeram a seu trabalho.[2] Em um ponto decisivo de sua argumentação, Solmi afirma que o pintor bolonhês interpõe entre o observador e o quadro "uma cortina impenetrável, um diafragma diáfano que deixa passar somente o eco de um mundo irrepetível. A última Natureza-morta ainda respira o ar corrompido daquele tempo sem presente no qual Morandi fez viver para si e para os outros, e talvez derradeiramente, os velhos despojos do homem na impossível humildade da poesia."[3]

       Não é esse o lugar adequado para se discutir um suposto platonismo da pintura morandiana, uma questão, aliás, pertinente. Contudo, a menção a essa "cortina impenetrável, um diafragma diáfano que deixa passar somente o eco de um mundo irrepetível", a meu ver, só poderia ser entendida em relação ao extraordinário tonalismo de Morandi.  Ao menos desde Giovanni Bellini, a pintura tonal lançou mão dos matizes de determinada cor para produzir uma unidade compositiva mais suave que a da maioria dos pintores florentinos, à exceção de Leonardo da Vinci. As variações de luminosidade de uma mesma cor conduzem o olhar a estabelecer uma unidade delicada entre elas. É daí que deriva “o diafragma diáfano” a que se refere Franco Solmi.

       Nos trabalhos de Estela – comparações qualitativas à parte – as soluções vão em outra direção. A disposição geométrica das tiras translúcidas de PVC (também elas regulares) parece oferecer um desafio à artista. Ou seja: como suavizar uma trama feita por faixas perpendiculares, sem que sua superfície se transforme numa simples colcha de retalhos? Sem dúvida, o rebaixamento dos contrastes de cor - se compararmos os quadros atuais aos expostos na exposição "Quadros e esculturas", em novembro de 2012 - ajudou na solução do "problema". Mas é a maneira original de construir suas cores ainda a principal responsável pela notável resposta que essa jovem pintora consegue oferecer a dilemas centrais da arte realizada nos nossos dias. Nas pinturas de Estela, aqueles diafragmas talvez ocultem odaliscas ou ninfas, mas jamais saberemos as promessas que guardam esses corpos que se dissolveram no próprio ardor.

       Resta entender por que sua atenção a problemas tão caros a Morandi (embora a artista mais próxima de Estela seja Agnes Martin) não a torna mais uma simples representante dos bons tempos modernos, com sua triste nostalgia.  Acredito que a resposta possa ser encontrada, ao menos em parte, no texto de outro importante analista da pintura de Morandi, o alemão Bernhard Growe.[4] Nesse artigo, o autor termina seu raciocínio nos seguintes termos: "Na medida justamente em que a luz se torna corpórea — parece-nos ver a névoa poeirenta da Emilia [província da qual Bolonha é a sede] recobrindo as naturezas-mortas —, os objetos se desvanecem, se retiram, para tornarem-se unos uns com os outros e com a claridade que os suga sem, é claro, jamais perderem a possibilidade de surgir novamente. Não há aí nenhuma l’art pour l’art, mas 'luz como metáfora da verdade'. E esta verdade somente conhece o mundo em estado de possibilidade ('cosidetta realtà')".[5]

       No tonalismo morandiano, a extrema sutileza tonal é bem mais que um elogio passadista dos requintes pictóricos da grande tradição italiana. A delicadeza revelada em sua pintura é também, simultaneamente, o reconhecimento dos riscos envolvidos pela extrema domesticação do mundo e a necessidade de mantê-lo ainda como o lugar de uma experiência possível.

       Que isso tenha sido obtido com tiras de plástico não deixa de ser uma resposta à altura daquele dilema. Na única escultura da exposição, quatro quadrados de mármore são dispostos em forma de cruz sobre o piso da galeria. Em seu centro, forma-se outro quadrado, vazio. Sobre a superfície das placas de mármore, foram abertas duas ranhuras paralelas pelas quais correm linhas de um azul muito claro, que se interrompem pela ausência do mármore no centro da peça. Em suma: tudo é interrupção no jogo contemporâneo da percepção. Nós percebemos algo que está para se mostrar, mas que se interrompe no meio do caminho. E é esse vazio, esse lugar frágil, que a artista quer tornar intenso como uma noite branca de Dostoievsky.

novembro de 2013

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1        Conferir o texto "Mistura e manda", sobre a exposição "Quadros e esculturas", de Estela Sokol. Zipper Galeria, novembro de 2012. São Paulo.
2        Ver Morandi: storia e lggenda. Grafis Edizioni d’Arte, 1978.
3        Op. cit., p. 108 e 109.
4        Ver o ensaio 'Cosidetta realtà': a indisponibilidade do mundo", em Revista USP 57; março/maio de 2003. Tradução de Dante Pignatari.
5        Idem. p. 180.